domingo, 14 de março de 2010

"Lobato, transcriador do Quijote"

Em nosso encontro de fevereiro, sobre o Dom Quixote, entre os exemplares da obra, foi apresentada uma adaptação, feita por Monteiro Lobato, intitulada "Dom Quixote das Crianças", a mesma que já havia sido comentada aqui no blog.

Faço essa postagem na intenção de demonstrar que a figura do herói da Mancha foi muito cara ao autor do sítio, tendo comparecido em outras situações e outras obras. Aqui destaco "O picapau amarelo", de 1939.

Na obra em questão, narram-se as peripécias que Dona Benta e seus netos passam depois de decidir instalar os habitantes do "Mundo da Fábula" nas terras vizinhas ao Sítio. Chegam de mudança todos os heróis e monstros gregos, todas as princesas dos contos de fada, Chapeuzinho Vermelho e os personagens das Mil e uma noites, sem falar de Peter Pan e Capitão Gancho, que também já haviam sido visitado o Sítio anteriormente.

Quando todos os personagens já estão instalados, constata-se que um deles "ficou ao desabrigo: D. Quixote. Com a sua mania de proezas e mais proezas, só trouxera o escudo, a espada e a lança - esquecera de trazer casa."

Tal "esquecimento" faz com que ele seja convidado por Dona Benta a passar uns dias na sua casa. Ao chegar, o herói cisma que o doce rinoceronte Quindim é o mágico Freston e só não o ataca porque Emilia aconselha o paquiderme a fugir.

Passado o susto, todos se dirigem para a varanda da casa. As crianças recorrem ao ferro de abrir latas para tirar a viseira do cavaleiro e "Pedrinho, que era mestre em abrir latas de sardinha e azeitonas, num instante abriu a cara de Dom Quixote", liberando o herói para comer os quitutes de Tia Nastácia.

Ao ver as gravuras de Gustave Doré num exemplar da biblioteca de Dona Benta, o fidalgo fica indignado: "Isto não passa duma mistificação! ... Esta cena aqui, por exemplo. Está errada. Eu não espetei este frade, como o desenhista pintou - espetei aquele lá." E trava-se um diálogo de cunho metalinguístico dos mais engraçados (e concisos). Dona Benta responde ao herói: "Isso é inevitável. Os historiadores costumam arranjar os fatos do modo mais cômodo para eles; por isso a História não passa de histórias." Nova indignação do herói: "Mas é um abuso! Eu, que sempre me bati pelas melhores causas, não merecia que me atraiçoassem deste modo." Emília se intromete, para espanto do cavaleiro andante: "O meio é o senhor mesmo escrever sua história, ou as suas memórias, como eu fiz. (...) Escrevi-as justamente para que não viesse nenhum Cervantes dizer a meu respeito coisas tortas ou arranjadas. Faça o mesmo, Senhor Quixote - e, se quer, eu o ensinarei como se escrevem memórias. Eu e o Visconde temos grande prática." Parêntesis: quem puder, leia "Memórias da Emília" para ver até onde vai tanta prática...

Por fim, destaco uma conversa entre Dom Quixote e Sancho Pança, com suas impressões sobre a acolhida:

- "Dormi uma boa soneca, amigo Sancho. E sonhei lindos sonhos. Quão formosa a Dulcinéia me apareceu!...
- Pois eu realizei belos sonhos - disse o escudeiro com o pensamento nos petiscos encontrados na copa. Estou aos arrotos... " (grifado no original).

Em tempo: leiam o seguinte texto de Marisa Lajolo, que encontrei na internet: http://lobato.globo.com/novidades/novidades32.asp

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