sábado, 18 de dezembro de 2010

Carta a alguns jovens leitores


Prezados Senhores,
 
       Foi com surpreendente alegria e em meio a dias de esquecimento que soube de uma pequena reunião de leitores que dedicara algum tempo a minha despretensiosa obra. E, curiosamente, começando por minhas cartas, trocadas ao longo de uns poucos anos com o Sr. Kappus – um bom rapaz, afligido simultaneamente pelas tolices da juventude e pelas profundezas de uma sincera reflexão. Inspirou-me por muitas vezes com suas dúvidas e com sua atitude sincera frente àquilo que muitos ditos poetas já esqueceram ou quiçá souberam – o verdadeiro valor da poesia em vidas tão breves como as nossas.



     
É uma pena que eu não tenha tido o cuidado de reunir as cartas que recebi do Sr. Kappus. Teriam assim um retrato mais fiel do que nos ocupara naqueles dias e eu não me teria sentido tão constrangido em ver apenas minhas respostas publicadas. Se puder confessar-me aos senhores, espero que ele não se tenha aborrecido por ter sido tratado como personagem secundário e por não terem sido localizadas suas cartas. Meus dias na Itália foram intensamente ocupados e ainda via-me às voltas com um esgotamento físico que tirou minhas atenções até mesmo em relação a afazeres mais sérios. Em todo caso, ficaria feliz em saber que ele pode tirar algum proveito de nossas poucas conversas para tornar-se um homem mais feliz, poeta ou não.

      Mas não é para falar daquelas cartas que escrevo esta, e sim porque, ao saber que em lugar tão distante há ainda quem se ocupe delas e dedique a este poeta um olhar compreensivo, ocorreu-me que poderia ter ainda algumas palavras a dizer. Partindo desta surpresa, estive a pensar se aquelas cartas mantinham ainda alguma utilidade ou já se haviam puído ao longo de tantos anos. Desconheço o tempo em que vivem e, por isso, não posso dizer se teriam encontrado naquelas conversas algo de significativo. Frente a tal estado de coisas, estimados senhores, creio que mais uma vez devo restringir-me àquilo que mais propriamente possuo e que, atravessando o tempo, nos torna mutuamente inteligíveis – a experiência da vida. Ainda mantenho-me fiel aos conselhos que dei ao jovem Kappus e, se me fosse dada a ocasião de escrever uma nova vez, procuraria, com razoável dose de coragem e esforço, tratar daqueles fatos cotidianos e graves que permanecem invariavelmente invisíveis sob olhos desatentos.

      A senhorita Cíntia e eu conversamos um pouco e tomei conhecimento de vossas atividades. Não posso dizer que li vosso blog, pois sequer compreendo bem do que se trate, mas ela disse que é uma forma de tornarem público o que lêem e também algumas notícias sobre boa literatura e sobre cultura em geral, o que deve, em todo caso, ter minha aprovação e estímulo. Soube também que já ninguém lê o fabuloso Jacobsen, o que é realmente um sinal de que as coisas mudaram e que estamos a perder as luzes que orientavam o caminho. Apesar disso, sinto-me honrado de ser um daqueles que respeitam e ecoam seu nome. Quem sabe não será pelas mãos de um modesto missivista que os pacientes leitores chegarão ao grande mestre?

      Mas gostaria de dirigir-me aos senhores. Pudera conversarmos mais pausadamente, mas infelizmente só me resta a oportunidade de escrever esta carta, assim, peço adiantadas desculpas caso não volte a respondê-los. Procurei imaginar o que dizer a cada uma das vossas senhorias, mas o distanciamento que mantemos fez-me cauteloso. Ainda assim, tendo em vista vossas atividades literárias, acho por bem alertar-vos quanto às armadilhas da vida que podem ser evitadas mediante o contato regular com uma boa literatura.

      Em primeiro lugar, não se impressionem pela pressa dos tempos. Sempre haverá os que a ela se rendem e pretendem tornar-se escritores da noite para o dia. E, ao que parece, isto tem sido facilitado em vosso tempo. Cuidado também com aqueles que pretendem destruir toda a tradição, vendo nela somente dogmatismo e retrocesso. Em geral, aos olhos dos que sucedem às grandes obras, restam apenas três posturas: admirar-se do alcance do espírito humano e comprometer-se com o que lhe cabe a partir dali; ignorar, insciente do que ocorre a sua volta ou depreciar e questionar tudo o que fora feito, alegando maior visão e nova compreensão das coisas, na maioria das vezes por não alcançar àquelas já conquistadas por outros. Em geral esta última postura é a adotada pelos que se intitulam modernos (e não sei se hoje já inventaram novos nomes para essa mesma tendência) e que guarda algo demasiado infantil ao pretender erigir-se sobre a queda do acumulado engenho humano, ao invés de valer-se dele para prosseguir o caminho. Lembra-me ainda a antiga fábula que narra a postura da raposa diante das uvas inalcançadas.

      Estejam também atentos àqueles que se satisfazem mergulhados nos vossos dias. Há quem se cegue com a primeira luz da manhã ao tentar ver nela toda luz do sol. É necessário perceber que a compreensão acerca dos homens muitas vezes só pode ser alcançada se são abandonadas as contingências imediatas e se é capaz de compreender a vida de modo aproximadamente atemporal. É neste empreendimento que a literatura mostra todo seu valor, pois registra este esforço de capturar as expressões da vida e levá-las para todos os tempos que possa alcançar. É por isso que em toda época é possível ler um bom livro e identificar-se com ele, pois o que se diz ali não esteve preso à superfície dos dias de seu autor, embora guardasse com ele alguma relação de pertencimento. É por isso que se pode ainda hoje ver as obras de Rodin e reconhecer uma profunda expressão do ser humano, pois ali não está um simples homem, ali está a humanidade.

      Com estas poucas palavras gostaria ainda de dizer a vossas senhorias, antes de despedir-me, que também vosso empreendimento literário é dos mais louváveis e foi editado por várias vezes entre os círculos cultos da Europa que conheci, ora de maneira mais sistemática, ora de forma mais espontânea. Isso não garantia a seus executores qualquer privilégio frente às artes, mas os tornava mais atentos e menos vulneráveis às más tendências, especialmente na literatura. Se isso não fez a todos artistas, poetas ou músicos, não é de se estranhar, pois que muitas vezes a atração pelo belo não é capaz de cultivar a habilidade, mas em todo caso é uma das melhores fontes para entender as capacidades humanas e seu significado frente à exigências da vida.

      A vossas senhorias do Palimpsestos desejo que tal resultado seja alcançado e que ele possa realçar os valores mais necessários à vida, que era afinal o que pretendia dizer ao prezado Sr. Kappus. Que vossas leituras os encontre naquela solidão imprescindível para, a partir dela e munidos de uma autêntica compreensão, se lançarem ao mundo.
Com minhas felicitações,
Rainer Maria Rilke

2 comentários:

Carolina Lima disse...

Cíntia, seu texto e o da Monalisa para mim foram os mais tocantes! Gostei muito, parabéns! Vou postar o meu também!

Cíntia Marcellos disse...

Poxa, Carolina, obrigada! Eu própria não posso concordar, mas fico feliz que tenha gostado.
Abraço e obrigada,