sábado, 18 de dezembro de 2010

Um encontro literalmente literário

Já está se tornando uma tradição no grupo a realização de produções escritas para os encontros do mês de dezembro. No ano passado tínhamos de escrever para um autor, lido ou não pelo grupo e alguns de nós publicaram aqui no blog. Em 2010 tínhamos a tarefa de imaginar um encontro do grupo com participação ou de personagens ou de autores de obras lidas até aqui. Foi um prazer dificultoso escolher quem incluir no texto, mas o resultado o vão avaliar os leitores. Espero que gostem.


É o último encontro do ano. O grupo chega ao final de 2010 com uma bagagem razoável de leituras e com projetos para o ano que vai começar. Saio de casa curioso pela revelação dos nomes do amigo oculto, mas o voo rasante de uma ave agourenta prenuncia que este encontro terá algo diferente.




E a suspeita se confirma logo nos primeiros minutos de conversa, antes do começo das discussões. Em ano de eleição, os comentários versam sobre candidatos eleitos e perdedores. Para minha surpresa, as meninas choram a derrota de um tal Masturbov1, que não sei quem é.

Na casa onde estamos, trabalha um jardineiro chamado Cândido2. Ao ver o que pode ser chamado “alegria da juventude”, ele decide se juntar conosco. É um sujeito bem especial: quebrantado pelas lides, segue acreditando que este é o melhor dos mundos possíveis e nesta época de Natal é mais fácil deixar-se levar por argumentos como os dele.

Entretanto, invocando o nome de Nietzsche3, um dos presentes interrompe a conversa do jardineiro, que volta para suas flores com a tranquilidade dos que sabem que até essas interrupções abruptas são programadas pelo Alto. Escrito assim mesmo, com maiúscula, para ninguém confundir com alguma pessoa dotada de mais altura. Acho até que o pobre jardineiro acredita que o autor alemão só existiu para que essa confusão pudesse ocorrer hoje.

E como a conversa está demasiado nietzschiana, algo estranho acontece: os livros saem voando da estante. Movem-se como aves. Batendo as asas, percorrem todo o ambiente. No meio do ruído, ouve-se uma gargalhada. Parece de Schopenhauer. Mas ele nunca riu, que se saiba. Nem quando nosso grupo se proclamava “Amigos do Schop”4.

Tomo da revoada livresca um volume deste filósofo alemão. Folheio e fico com dúvidas sobre a qualidade deste relato. Sobre sua veracidade, não cabe dúvida: peço que me belisquem, sinto a dor e ainda assim vejo livros-pássaros passeando pela sala.

No meio do tumulto, alguém abre uma janela e desta sala saem histórias que vão arribar sabe lá Deus onde. Inclusive a história que escrevo e que acontece no momento mesmo de sua escritura.

Não suportando mais “a pressão dos fatos”5, uma das meninas sai do ambiente enlaçando pelos ombros alguém que se esconde embaixo de uma improvável, inesperada e quase inexistente armadura medieval6.

E eu, que tampouco posso suportá-la por mais tempo, saio discretamente por uma porta lateral que me conduzirá à minha cama onde, num final previsível e kitsch, quiçá banal, um de meus parentes me sacudirá para dizer que foi tudo um sonho. Mas não faz mal: depois de Alonso Quixano7, nenhum leitor estranha essa mescla do literário com o real. Habitantes de dois mundos, achamos tudo natural.

Notas:
  1. O nome Masturbov aparece no romance “O livro do riso e do esquecimento”, do tcheco Milan Kundera. Esta obra foi lida pelo grupo no mês de março/2009.
  2. Referência ao personagem (e ao tema) da obra “Cândido ou O Otimismo”, do francês Voltaire, lida pelo grupo em junho/2009.
  3. Pequena e singela homenagem a um dos membros do grupo. Para Fabrício, uma citação de Nietzsche cabe em qualquer contexto e todos já fazemos piada com isso.
  4. A primeira obra lida pelo grupo, em janeiro/2009, foi “A arte de escrever”, de Arthur Schopenhauer. E até que o grupo fosse batizado de Palimpsestos – se não me engano em abril/2009 – ele ostentava o bem humorado nome de “Amigos do Schop”. Essa informação também foi lembrada pela Monalisa no texto dela.
  5. Referência à obra “A hora da estrela”, de Clarice Lispector, autora que o grupo ainda não leu. A inclusão já faz parte de um lobby para aprovação de uma das obras dela em algum momento futuro.
  6. Alusão à obra “O cavaleiro inexistente”, de Ítalo Calvino. Esta obra foi discutida pelo grupo em maio/2010 e rendeu uma boa discussão. Agilulfo, o personagem principal do romance, também foi aproveitado no texto de Fabrício.
  7. Óbvia referência ao Dom Quixote de La Mancha, obra mestra da literatura universal, escrita por Miguel de Cervantes Saavedra. A obra foi discutida pelo grupo nos encontros de fevereiro/2010 e março/2010, em encontros que contaram com a participação dos membros do grupo Prazer da Leitura e cujas fotos já foram postadas aqui no blog.
  

4 comentários:

Cíntia Marcellos disse...

Oi Aílton,
Seu conto ficou ótimo! Que tal se colocasse links para as referências que faz? Acho que pouco se lembrarão do Masturbov...

Abraços,

Ailton Augusto disse...

Sim, realmente.

Aliás, ao ler sua postagem, acho que vou incluir um leia mais na minha, para poder colocar as referências. Obrigado pela dica.

Abraços!

Carolina Lima disse...

Agora sim, claro como água... Para mim, que entrou no grupo depois e não leu nenhuma dessas obras, não estava entendendo nadica de nada!! rs
Sua narrativa conta também um pouco da história do grupo, ficou bem legal! Parabéns!

Ailton Augusto disse...

Obrigado, Carolina.

O seu texto também ficou bom e acho que todos nós contamos um pouco de nós e do grupo em nossos textos.

Abraço!