Estava concluída afinal a construção daquele prédio. Adornado com ogivas góticas, colunas jônicas e vitrais românicos. Para quem olhasse de relance, aquele bloco maciço de pedra se assemelharia com uma sinagoga. No entanto, afiando um pouco mais o olhar, o observador contemplaria uma catedral de influência jesuítica. E por fim, aos mais curiosos e ousados que adentrassem naqueles umbrais mestiços, o interior da construção se revelaria um panteão que esplende no frio e inerte mármore o vulcão canalizado das sensuais formas divinas.
Observando, anestesiado, aquela miscelânea arquitetônica, o jovem Wasprício se virou e perguntou ao dono daquela obra que cosia em um só corpo diversos movimentos estéticos:
- Léocifer, até entendo que queiras encontrar a paz morando como um eremita nesses prados solitários, no entanto, não compreendo o motivo de mesclar formas arquitetônicas tão distintas em um só bloco.
- Tu não entendes jovem Wasprício, pois é muito novo e ainda não foste calejado pelos nocautes que a vida nos dá. Mas a pureza que tu persegues só conduz ao nada. Se querer encontrar o Absoluto como eu, deves procurar todas as experiências humanas e espirituais que puderes: só assim encontrarás a face divina.
- Tudo bem, mas consegues enxergar aquele amontoado de ruínas do outro lado daquela montanha?
Wasprício passou o binóculo que trazia ao pescoço para Léocifer.
- Agora, sim, jovem Wasprício, eu consigo ver tais destroços.
- Pois bem, fui eu que reduzi ao pó o que antes era um templo naquele local.
- Por que fizeste tal vandalismo?
- Creio que a destruição é uma espécie de santidade. Se não podemos criar como se fossemos deuses, ao menos podemos destruir como se o fossemos. Destruir torna-nos mais divinos. E, além do mais, eu estava certo que aquele templo não conduzia ninguém a Deus. Então, qual é a utilidade de um lugar sacro que não nos conduz à santificação? Mas vejo que isso só me trouxe certa angústia, pois não foi me dada nenhuma epifania com essa tola destruição. E agora com fragmentos tais foi que escorei minhas ruínas.
- Não há motivo para te entristeceres, jovem, pois para mereceres o Paraíso será necessário perdê-lo muitas e muitas vezes. O tempo é um câncer, certo, mas olha que as cãs são a coroa da sabedoria e da experiência; e as rugas nada mais são do que uma flácida máscara que atesta a tua luta para te manter em pé, enquanto a gravidade te força a se manter prostrado. Teu coração é tão duro quantos as ruínas que semeaste nestes campos.
- Tu me chamas de ‘coração de pedra’, o que me aflige. Mas me consolo lembrando que uma casa só pode subsistir se estiver edificada sobre uma rocha. Apenas sendo-se pétreo, alcança-se a eternidade.
- Discordo de...
Neste momento, Léocifer foi interrompido por um barulho aterrador de cascos de cavalos que se chocavam com o chão daqueles prados. O cavalo – que cortava o ar com a eficiência de uma espada – deixava profundas marcas no chão que se assemelhavam a ideogramas de uma língua perdida na confusão de Babel. Sobre ele, um cavaleiro de armadura branca, com toda a garbosidade de um nobre unida ao onirismo próprio de uma aparição. O fantasma, circundado por uma névoa quimérica, levantou a mão direita e disse:
- Saudações, chamo-me Agilulfo, e sou cavaleiro do grande rei Carlos Magno. Vim até aqui por ordem de outro rei – maior até do que o rei Carlos Magno – que mandou recompensar o criador desta interessante obra arquitetônica. Pois bem, qual dos dois foi o projetor desse insólito prédio?
Léocifer, um pouco receoso, deu um passo à frente e disse:
- Sou eu, ó nobre cavaleiro.
- Pois bem, conduza-me ao interior desse templo.
- É claro.
Os dois se deslocaram lentamente ao interior do prédio de Léocifer, enquanto o jovem Wasprício se deitava sobre a relva com as mãos entrelaçadas na nuca. Durante a caminhada, Agilulfo olhou para trás, na direção do jovem, diversas vezes e por fim disse:
- Aquele jovem me parece ser estranhamente familiar.
Leócifer mostrou toda a opulência de seu castelo-templo ao cavaleiro. Apontou as pinturas barrocas, as esculturas gregas, as pinturas rupestres e os artefatos populares. Encantado com a variedade artística daquele local, Agilulfo se virou e disse:
- Jovem Léocifer, tu me trataste demasiado bem e me mostraste coisas que surpreenderam a mim, cavaleiro andante de Carlos Magno, habituado às mais exóticas e belas visões. Assim conforme já te anunciei anteriormente, aquele que me enviou te recompensa por tua obra, concedendo o direito de lhe fazer uma pergunta. Servirei de mediador: eu invocarei ao meu rei – que é maior do que o grande rei Carlos Magno – e ele te responderá através de mim. Se quiseres saber dos mistérios do Universo, do segredo da verdadeira glória ou ainda como é o Além, pergunte-me agora.
Léocifer viu-se atravessado pelos mais lancinantes desejos e responsabilidades. Estava premido pela curiosidade, pela necessidade de conhecer os mistérios sob o véu diáfano do Universo e de desnudar para si a Máquina do Mundo. Mas, vencido pela compaixão, lembrou das dúvidas do jovem Wasprício e afinal perguntou:
- Nobre cavaleiro Agilulfo, gostaria de saber o porquê das aflições do jovem Wasprício.
- Tem certeza de que é esta a sua pergunta?
- Sim.
Agilulfo invocou o seu outro rei – que era maior do que o grande rei Carlos Magno – e por fim respondeu à pergunta proposta por Léocifer. Após cumprida a missão de seu dono, o cavalo de Agilulfo transformou-se em uma espécie de pira e ascendeu aos céus junto com o nobre cavaleiro. Léocifer saiu de sua casa-templo-castelo cabisbaixo e contou toda a história ao jovem Wasprício.
- Pois bem, Wasprício, devo te contar agora o que o nobre cavaleiro Agilulfo me revelou e que deve ser a causa de tuas aflições mentais: tu és a reencarnação de Gurdulu. Tu existes, mas não o sabes (ou não o quer).
Um comentário:
Hilário.
Mas bem sabes ó Wasprício que, como bem nos recomenda o Mestre William de Bakersville (Il nomi della Rosa) que "devemos rir da verdade", esta mítica "verdade absoluta" à qual tantos desperdiçam suas vidas e até, andam destruindo o mundo ou se perdendo nele.
Postar um comentário