sexta-feira, 28 de maio de 2010

"Recordações do Escrivão Isaías Caminha", Lima Barreto

Considerado pela crítica como o maior nome do Pré-Modernismo brasileiro, Lima Barreto (1881-1922) publicou uma obra relativamente extensa, incluindo romances, contos, crônicas, críticas literárias, memórias e uma série de artigos em jornais e revista da época, foi reconhecido pela marca da literatura comprometida com a vida social, seus dramas e iniquidades.

Seu livro “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, publicado parcialmente na revista Floreal (dirigida por Lima Barreto) ao longo de 1907, só vem a público como livro em 1909, editado pela Livraria Clássica Editôra, de Portugal. Oito anos depois, Barreto publica uma segunda edição, revisada e aumentada, desta vez no Brasil, pela Typografia Revista dos Tribunais. A partir daí, o livro conhece algumas reedições com pequenos acréscimos (como um retrato do autor) e reimpressões que pontuaram as tentativas de que sua obra não fosse esquecida pelo público leitor.

O livro conta, em retrospecto, a trajetória de Isaías Caminha, um rapaz do interior que, ao final do liceu, se vê fascinado pela idéia de ir estudar no Rio de Janeiro, a capital fervilhante nos seus primeiros anos de República. Filho ilegítimo do vigário de sua freguesia com uma emprega da casa, Isaías crescera cultivado com os melhores valores e estímulos, chegando a considerar que o saber e a inteligência seriam a razão de ser da felicidade, da abundância e da consideração entre os homens.

Após sua chegada ao Rio de Janeiro, suas impressões passam rapidamente do sonho e da idealização à dureza do cotidiano e das convenções sociais. Numa época em que a cor demarcava fortemente os lugares na sociedade, nosso personagem é confrontado com uma realidade suspeita, com pessoas de caráter duvidoso e interesses escussos.

Recheado de agudas observações sobre as práticas e os ambientes literários, políticos e jornalísticos, o livro não se reduz a uma crítica social, evoca também dos dramas humanos frente a uma sociedade corrompida e degradada em seus valores.

Como recurso narrativo, Lima Barreto escreve uma ”breve notícia” à obra, na qual diz que o autor, seu amigo e escrivão da Coletoria Federal de Caxambu, Isaías Caminha, resolve escrever, em 1903, um livro de suas recordações por ocasião da leitura de um artigo de revista no qual se depreciava as capacidades das pessoas “de côr”. Defensário da tese de que o meio pode corromper e anular as disposições individuais, pretende com o livro fazer ver a seus opositores as verdadeiras causas para que “de tão belos começos” se extraíssem “tão feios fins”.

Com a ironia e a força da escrita de Lima Barreto, seguem-se descrições dos tipos encontrados na capital: o político indiferente aos interesses públicos, os poetas revolucionários dedicados a sua própria vaidade e alheios a sua incoerência, os pseudo-intelectuais cuja fama é alimentada pelo mero status e posição social, até a trama de enganos que sustenta as profissões e às consciências.
Inicialmente Isaías sofre com as negativas que encontra e com a constatação da precariedade daqueles a quem ele atribuía grande valor. Percebe sua condição frente a eles mas é impotente para mostrar o que pretende e o que pode. Passados os dias de penúria financeira e moral, vai-se abatendo, sendo anestesiado em suas forças, sem ter a quem recorrer. Quando seus sonhos já não eram mais que lembranças empoeiradas e a fome uma presença intermitente, começa a trabalhar como contínuo na redação do jornal “O Globo”, um folhetim de oposição ao governo.

Neste ambiente, todas as suas antigas concepções se desfazem e se diluem na rotina dos dias, observa as técnicas que pautam as aparências até que, por um dramático e ridículo acaso, sua situação muda: de contínuo torna-se companhia constante do diretor do jornal e, por fim, jornalista. Sua educação é reconhecida por todos com estranheza e despeito, principalmente por aqueles que apenas se alimentavam das contingências favoráveis.
Bem educado mas não formado, Isaías deixa a condição de observador e acaba por tornar-se exímio executor das mesmas práticas que, noutros tempos, o haviam chocado. Ainda se vê afligido pela incoerência entre seus antigos valores e ambições e o destino que encontrou na vida, mas sem forças ou direções a tomar, não chega a constatar que já é tarde, que já perdera-se, apenas continua.
Transfere-se para a Coletoria no Espírito Santo, onde pretende casar e ter filhos, mas pouco desses planos também é realizado. É Lima Barreto, na condição de prefaciador do livro do amigo que nos dá a indicação do destino de nosso personagem: “o meu amigo perdeu muito da sua amargura, tem passeado pelo Rio com belas fatiotas, já foi ao Municipal, freqüenta as casas de chá; e, segundo me escreveu, vai deixar de ser representante do Espírito Santo, na Assembléia Estadual, para ser, na próxima legislatura, deputado federal. Ele não se incomoda mais com o livro; tomou outro rumo [...]Enviuvou sem filhos, enriqueceu e será deputado. Basta.”

Nesta obra, como na sociedade descrita, não há espaço para redenção, para o reconhecimento das aspirações legítimas. Desmascara-se a degradação e a corrupção dos valores e nos deixa a pergunta: diante de toda verossimilhança (será mera coincidência?) haverá hoje, para nós?
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Barreto, L. (1961). Recordações do Escrivão Isaías Caminha (2ª Ed.). Prefácio de Francisco de Assis Barbosa. São Paulo: Brasiliense (Obra original publicada em 1909).

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