domingo, 30 de maio de 2010

O autor como leitor de si mesmo: Érico Veríssimo e a proposição da caricatura como artifício de construção do romance “Caminhos Cruzados” (1934).

            O presente texto foi elaborado para a apresentação de seminário da disciplina de Literatura Brasileira III, do curso de Letras Noturno da UFJF, ocorrida em 25 de julho de 2010. Nele, busco apontar uma chave de leitura para o romance "Caminhos Cruzados" (1934) a partir da leitura que o autor - Érico Veríssimo - faz da obra em prefácio publicado na edição de 1960 - ver capa ao lado.
            Quando o autor preparou o referido prefácio, haviam-se passado vinte e seis anos desde a primeira publicação da obra. Nele Érico Veríssimo descreve o conflito interior por que passou após reler Clarissa, seu primeiro romance, publicado em 1933. Achou o “tom” da obra demasiado otimista, demasiado poético. Diante disso, se questionou: “Por que não dar no próximo livro carta branca ao satirista?”

              Essa carta branca resultou em uma obra de traços fortemente caricaturais, que “foge às descrições bizantinas, às sutilezas psicológicas, às cenas elaboradas. Suas histórias são objetivas e de pura ação (embora quase nunca de ações puras).” E é pondo em cheque, através da caricatura, a “pureza” das intenções de suas personagens que o autor vai revelando como funciona a “engrenagem” da sociedade urbana (gaúcha). Isso explica, por exemplo, a minúcia com que descreve a visita de D. Dodó Leitão Leiria ao tuberculoso Maximiliano (pp. 64 – 69).
            Sobre esse excesso, o romancista dirá ainda: “O poeta que escrevera Clarissa estava um tanto perplexo em face do caricaturista que traçara a carvão e sarcasmo retratos como os de Dodó, Leitão Leiria e Armênio Albuquerque.” e também que “Clarissa e Caminhos Cruzados não pareciam livros escritos pelo mesmo autor. Se no primeiro havia um exagero de luz, talvez houvesse no segundo um excesso de sombra. Para evitar as armadilhas da poesia e da ternura, o autor havia caído nos alçapões do cinismo e da impiedade.”
            Em face dessas afirmativas do próprio autor, é interessante acompanhar alguns desdobramentos de fatos ligados à personagem Dodó Leitão Leiria. Esposa de um comerciante abastado (um dos homens mais ricos de Porto Alegre), Dodó dirige várias associações de caridade. O que, à primeira vista poderia soar como atitude solidária, é pouco a pouco revelado como sendo uma estratégia de promoção social. A falsidade da intenção caritativa é explicitada em uma passagem do capítulo 86, pelo pensamento de Vera, a filha da personagem (p. 286).
            O pensamento de Vera é uma reação à “entrevista” que a mãe concedera à Gazeta. Nesta entrevista, ao ser questionada sobre sua satisfação com relação à sociedade em que vive; D. Dodó responde negativamente (p. 248). O problema da declaração da “boa senhora” é que não é exatamente a sorte quem “desprotege” as pessoas. São os burgueses como seu marido, que demitem funcionários sem razão suficiente apenas para conseguir colocação para conhecidos de pessoas influentes  (p. 251).
            O mesmo “procedimento” já havia sido adotado anteriormente com João Benévolo. Demitido, ele se refugia em um mundo imaginário, deixando mulher e filho na dependência da generosidade dos vizinhos e da generosidade não tão generosa de Ponciano, ex-noivo de sua esposa. Pressionado por Laurentina, Janjoca (como era chamado pela mulher) procura o ex-patrão para tentar uma colocação. Mas o descaramento e a falsidade do burguês mostram-se sem limites, concedendo ao rapaz enganosas esperanças (p. 207).
            Confirmada a negação do emprego (o romance só a deixa sugerida); João Benévolo vê sua situação ficar cada vez mais crítica. Um dia, sai de casa e fica perambulando sem rumo pelas ruas, sem graça de voltar sem emprego e sem dinheiro. Depois de horas andando sem comer nada ele cai em praça pública, sendo recolhido pelo carro da Assistência. Um passante, então, comenta a entrevista de D. Dodó, julgando o “desprotegido da sorte” como se ele tivesse caído na rua por algum desregramento intencional (pp. 315-317) e, obviamente, ignorando o quanto a digna senhora teria de participação na ruína daquele rapaz.
            Outro desdobramento que deve ser notado é o falecimento de Maximiliano. Sua morte se dá sem a assistência prometida por D. Dodó. Mãe dos pobres, ela simplesmente se esqueceu dele porque estava envolvida com preparar um baile beneficente e, ainda, com os preparativos de sua própria festa de aniversário, na qual houve espaço para sonatinas a quatro mãos, conversações e homenagens (p. 298).

Referência:

VERÍSSIMO, Érico, Caminhos Cruzados. Porto Alegre: Editora Globo: 1960. [Todas as indicações de páginas presentes no corpo do trabalho são baseadas na disposição do texto na referida edição].

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