“A Metamorfose” do tcheco Franz Kafka é um livro no qual, de maneira peculiar (mais precisamente kafkiana, claro), o leitor é colocado, desde as primeiras linhas, sem qualquer prévia ou introdução geral, diante de grandes tensões e conflitos. Por conta dessa ausência de orientações, explicações e razões – as quais permanecemos desejando e buscando do começo ao fim da leitura, num esforço em vão, já que elas não estão mesmo ali – inúmeras perguntas perturbam nossos pensamentos; e algumas delas talvez continuem perturbando para a vida toda, creio eu. Uma das mais interessantes é: seria mesmo em uma barata que Gregor se transformara?
Muitas pessoas, tentando se recordar deste livro de Kafka, dizem: “Ah, é aquele do cara que virou uma barata!”. Mas a coisa, em todos os sentidos, não é assim tão simples e superficial... A descrição de um inseto que causa repulsa, asco, nojo, repugnância, e a forma como é feita essa caracterização ao longo da estória, se aplicariam muito bem a uma barata. Mas não só.
Muitos tradutores e adaptadores traduziram ou interpretaram o termo "inseto" por "barata", talvez pensando que era óbvio (mas, ao menos pra mim, Kafka não era tão óbvio assim), ou por outros motivos. Peter Kuper, o qual fez uma adaptação em quadrinhos do livro, seguiu essa linha em seus desenhos.
No original alemão, a primeira frase é a seguinte:
Als Gregor Samsa eines Morgens aus unruhigen Träumen erwachte, fand er sich in seinem Bett zu einem ungeheueren Ungeziefer verwandelt. (Franz Kafka: Gesammelte Werke. Band 5, Frankfurt a.M. 1950 ff., S. 57-73)
O termo "ungeheuer[en]" (aqui com a declinação do adjetivo no dativo) significa, no português, "enorme", "monstruoso". E o "Ungeziefer" pode ser "bicho", "inseto". Portanto, é como na boa tradução de Modesto Carone (Companhia das Letras, 1997): "inseto monstruoso", nada de barata, que pode ser "Schabe" ou "Kakerlak" no alemão. Além disso, parece que o próprio Kafka pediu para não ser desenhado inseto algum na capa do livro quando foi publicado.
É também possível pensar, que a decisão sobre essa questão talvez dependa, um pouco ou um muito, da interpretação geral que se faça da estória e das intenções de seu autor. Sendo assim, dada a falta de evidência cabal, e apesar de eu, particularmente, não gostar de ter que dizer isso, fica a critério da imaginação de cada um... E a dúvida permanece...
2 comentários:
Interessante suas considerações sobre essa "problemática" kafkiana Diego... hehehe
No meu entender se é uma barata ou não não é uma questão importante, como disse, é algo para se ficar ao critério de quem lê... Ou melhor, não deve mesmo ser pensado como um inseto particular, concreto. A própria atitude de Kafka, não permitindo que se colocasse um desenho de inseto ou barata na capa do livro, leva a crer isso. Vejo muito mais essa transformação como algo mais abstrato, simbólico... portanto, quanto mais generalizado, como o terno "inseto monstruoso", melhor.
Zé, brigado pelo comentário. Bacana a sua leitura.
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