sábado, 28 de maio de 2011

As tradições em Mia Couto

Embora marcantes as relações entre Brasil e África, o que os escritores africanos escrevem atualmente ainda não é tão conhecido por aqui. É oportuno, então, deixarmos um breve registro sobre uma das melhores obras do escritor moçambicano Mia Couto, Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2005).
Vale lembrar que no cerne das questões trazidas, pelo já premiado escritor, estão os confrontos e os rastros culturais decorrentes da colonização e do entrecruzamento de culturas em que se encontra Moçambique. De um lado, a visão do colonizador português; de outro, o terreno movediço de tradições, cuja linguagem propõe a necessidade constante de enfrentamento dos novos enunciados que decorrem dessa geografia cultural.
Assim é que a obra Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra se configura num grande embate de tradições culturais: aquelas dos povos do Índico, as dos antepassados, de matriz Bantu, e a que foi imposta pelo colonialismo. Sem referir-se diretamente a questões políticas, mas apontando os confrontos e conflitos de uma realidade comum a um dos países mais pobres do mundo, Mia Couto desenrola, de forma poética e crítica, as últimas décadas da história moçambicana: “Nenhum país é tão pequeno como o nosso. Nele só existem dois lugares: a cidade e a Ilha. A separá-los, apenas um rio. Aquelas águas, porém, afastam mais que a sua própria distância. Entre um e outro lado reside um infinito. São duas nações, mais longínquas que planetas. Somos um povo, sim, mas de duas gentes, duas almas” (p. 18)
É nesse cenário que o personagem Marianinho, um jovem universitário, retorna à sua terra natal para participar do inusitado funeral do avô, Dito Mariano, um defunto cuja morte continua incompleta. Enquanto aguarda pelo cerimonial fúnebre desse semidefunto (ou semivivo?), o estudante é testemunha de estranhas visitações através de pessoas e cartas que lhe chegam do outro lado do mundo. São as revelações de um universo cultural, tênue e ameaçado, que Marianinho reencontra, ao mesmo tempo em que se vê como um estranho para os familiares: “Me olham, em silenciosa curiosidade. Há anos que não visito a Ilha. Vejo que se interrogam: eu, quem sou? Desconhecem-me. Mais do que isso: irreconhecem-me” (p. 29).
Vivendo, assim, em espaços que comportam simultaneamente presença e ausência, os personagens da Ilha Luar-do-Chão representam o sujeito-objeto de uma travessia infindável, pela qual são instigados a buscar um meio de ingressar na contemporaneidade, tendo que enfrentar, para isso, o mundo de fuga e violência do passado colonial. É em meio a essa inusitada e comovente história que fica o convite para conhecermos um pouco mais das literaturas africanas e, em particular, da prosa coutiana...

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