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Vale lembrar que no cerne das questões trazidas, pelo já premiado escritor, estão os confrontos e os rastros culturais decorrentes da colonização e do entrecruzamento de culturas em que se encontra Moçambique. De um lado, a visão do colonizador português; de outro, o terreno movediço de tradições, cuja linguagem propõe a necessidade constante de enfrentamento dos novos enunciados que decorrem dessa geografia cultural.
Assim é que a obra Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra se configura num grande embate de tradições culturais: aquelas dos povos do Índico, as dos antepassados, de matriz Bantu, e a que foi imposta pelo colonialismo. Sem referir-se diretamente a questões políticas, mas apontando os confrontos e conflitos de uma realidade comum a um dos países mais pobres do mundo, Mia Couto desenrola, de forma poética e crítica, as últimas décadas da história moçambicana: “Nenhum país é tão pequeno como o nosso. Nele só existem dois lugares: a cidade e a Ilha. A separá-los, apenas um rio. Aquelas águas, porém, afastam mais que a sua própria distância. Entre um e outro lado reside um infinito. São duas nações, mais longínquas que planetas. Somos um povo, sim, mas de duas gentes, duas almas” (p. 18)
É nesse cenário que o personagem Marianinho, um jovem universitário, retorna à sua terra natal para participar do inusitado funeral do avô, Dito Mariano, um defunto cuja morte continua incompleta. Enquanto aguarda pelo cerimonial fúnebre desse semidefunto (ou semivivo?), o estudante é testemunha de estranhas visitações através de pessoas e cartas que lhe chegam do outro lado do mundo. São as revelações de um universo cultural, tênue e ameaçado, que Marianinho reencontra, ao mesmo tempo em que se vê como um estranho para os familiares: “Me olham, em silenciosa curiosidade. Há anos que não visito a Ilha. Vejo que se interrogam: eu, quem sou? Desconhecem-me. Mais do que isso: irreconhecem-me” (p. 29).
Vivendo, assim, em espaços que comportam simultaneamente presença e ausência, os personagens da Ilha Luar-do-Chão representam o sujeito-objeto de uma travessia infindável, pela qual são instigados a buscar um meio de ingressar na contemporaneidade, tendo que enfrentar, para isso, o mundo de fuga e violência do passado colonial. É em meio a essa inusitada e comovente história que fica o convite para conhecermos um pouco mais das literaturas africanas e, em particular, da prosa coutiana...
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